sábado, 31 de maio de 2014

diário de bordo

não há mais nada para dizer
já nem o cuspo cola
a areia resume-se ao incontável

e que sobra dessas horas de voragem?
onde é que está o mar que pensámos prometido?
que barqueiro virá? que moedas lhe daremos?

queremos dar a volta subir passar para outro lado
agarrar a besta de novo e novamente
queremos inventar um pó que nos suje outra vez as mãos
como sempre

que faremos agora que encostamos a faca
à garganta de todos os monstros sagrados
e nada mais resta além da pornografia

que faremos com este calor
de onde nada nos salva
e todos os cães são de guia

que faremos amanhã quando rebentarmos de prazer
quantas interrogações ficaram por pontuar
e que pontuações nunca interrogaremos

podemos falar de casas e de paisagens
da solidão que vive dentro dos objectos ordinários da vida
branquear a memória sem levantar suspeitas
crivar toneladas de literatura
e depois disso
que podemos
nós?


***


uma corrente sem direcção
um acontecimento sem acontecer
um nome sem uma coisa para lhe dar
um significado sem significar

um narciso sem reflectir
um panteão por adorar
uma celebração sem vinho
histórias que ninguém vai lembrar

um amor pouco dado
uma flecha nunca disparada
uma jóia muito trabalhada
enterrada no túmulo de um qualquer rei

uma alegria que não causa alvoroço
vai guardada na profundidade de um bolso
uma tristeza que faz meio mundo chorar
plantada no sono de quem se recusa dormir

e não tem fim


***


o peixe da minha vida

podemos sempre ir mais fundo
atravessar todas as coisas que não se julguem nossas
podemos continuar a tocar todas as manhãs
como se a música nunca tivesse acabado

podemos dançar
entregar tudo ao livre movimento
nunca impedir que a água corra
por onde a água tiver que correr

podemos flutuar
deixar que o corpo se levante
e deixar
simplesmente
que a coreografia aconteça

desse sonho tão querido tão desejado
enfim nos libertemos da lei da gravidade
e apenas ser
toda a virtude que é amar

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