O Ilhote da
Cobra já não existe. Não sei porque lhe chamavam assim. Devo ter algum tio que
ainda se lembre. Mesmo para mim, o ilhote sempre me pareceu exótico. Muitas
vezes caminhei pelo sapal em redor, e sempre o olhei com espanto. Uma dezena de
casas ali, numa escassa areia rodeada de lama e arbustos salinos. De um lado, a
Praia de Faro e a Ilha Deserta, e o acesso ao mar. Do outro o entrançado de
canais que leva à cidade e à Ilha do Farol.
Para mim, o Ilhote
da Cobra, com as suas casas brancas ali plantadas no meio da ria, não era
somente parte da paisagem, era também uma espécie de herança anónima, fazia
parte de uma memória colectiva. Ali viveram pessoas. Há uma história de vida
marítima ligada ao lugar, àquelas casas. O Ilhote da Cobra, não é o Ilhote da
Cobra sem as suas casas, sem os seus vestígios humanos. A demolição das casas
no Ilhote da Cobra, implica a demolição de um registo cultural. As demolições
nas ilhas barreira da Ria Formosa são a evidência física dessa destruição.
Mas nenhuma
cultura desaparece sem que outra, emergente, tente se sobrepor. Neste caso
concreto, é uma cultura higienista, a da preservação e da renaturalização, que,
de tão humana, é perversa. Transporta em si uma razão retrógrada, uma queda
para trás de querer ser tão à frente. Esta cultura entende a Ria Formosa sem os
seus homens, sem os seus vestígios, uma coisa limpa e estetizada. Vê no acto de
subtrair à Ria os seus homens, uma forma de preservar essa experiência cultural,
à qual se sobrepõe. Retirar os homens da Ria à Ria, é artificializar a Ria.
Será certamente feito um museu, um dia, para acabar de vez com tudo.
O conceito de
renaturalização é simplesmente um desastre, uma ofensa gravíssima à minha
integridade. Renaturalizar é a práctica camuflada do resort. Mas é também um buraco negro asqueroso desta cultura, que
tudo arrasa e devora, rebuscando eternamente os seus disfarces. A
renaturalização não implica só demolições, implica também a eliminação de
diversas espécies vegetais, trazidas pelo homem, como por exemplo a árvore com
mais de 30 anos que tenho aqui à frente de casa. Gostava de saber se têm algum
plano de contenção para os melros, que nos últimos anos têm vindo com mais
frequência aqui nidificar. E já agora muito boa sorte com a remoção do chorão-das-praias.
Assim como não
há uma Ria com homens e outra sem homens, não há um Ilhote da Cobra com casas e
outro sem casas. A destruição física do Ilhote da Cobra (resta apenas o lugar higienizado), implica a destruição
do seu imaterial. A organização que propõe repor assegura a destruição.
Como disse um
amigo meu, “renaturalizar é pôr como estava antigamente”. Mais simples do que
isto é difícil. Tentar pôr uma coisa como ela estava antigamente é, fundamentalmente,
fascista. Num mundo em mudança veloz e constante, que esforço é este para "pôr
coisas como elas estavam antigamente"? E que rara entrega é esta à impossibilidade?
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