DIÁRIO DE BORDO
a chuva tem
uma música que eu consigo ouvir
uma magia
meteorológica carregada no cinzento
que se
aprende a olhar o tempo nos olhos duma
criança
pendurada à janela na tarde de domingo
enquanto não
chega o sono e a escola não começa
demoramos a
crescer fazendo trabalhos de casa
damos por
nós a brincar e há uma vida inteira que passa
adiando o
despertador minuto a minuto
o cheiro das
torradas faz‑nos salivar na cama
e com dez
anos começamos a beber café
e dez anos
mais tarde somos a mesma criança
o sono a
chuva as tardes de domingo
que nunca
conseguimos preencher
põe‑lhe mais
dez anos em cima
e o que
mudou foi o tamanho da roupa
e agora
brincamos como gente grande
todos os
trabalhos ainda são de casa
não temos
testes mas aquilo que nos aconteceu
pode ser que
nos dobre a broa d’asperança
***
aqui a bordo
vamos todos bem
porque não
existe mais do que este barco
e ainda
conseguimos ir todos dentro dele
e na verdade
a grande luta que travamos
é esta
vontade de fugir acometida ao infinito
podemos
pensar que passa mas ao largo
não existem
os mínimos sinais de terra
e até as
baleias fogem de nós
enterrámos
definitivamente o azul
vamos todos
bem mas somos um perigo
somos o
escuro mais duro do destino
a mancha
salgada nas cartas de navegação
que nenhum
astrolábio consegue resolver
e todas as
mães continuam a chorar
***
o mito é a moca que faz o futuro
a ânsia que
faz as nações perdurar
o espectro
da grandeza a simulação
o fantasma
intermitente da obscuridade
sem que a
nefasta sombra nos tombe
e por
ventura admiremos na dureza
os tratados
que nos dizimaram aos milhares
havemos de
continuar navegando
o mar só tem
duas coisas certas
a volta ou o
não voltar
a história
só tem uma
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