sábado, 23 de janeiro de 2016

DIÁRIO DE BORDO



HOJE COMI O PEIXE MORTO A NOITE PASSADA
O NOBRE SACRIFÍCIO EMOCIONOU-ME
SE CHOREI MUITOS PEIXES CHORARAM COMIGO

***

Nós que dobrámos e queimámos as mãos
na grande fogueira dos barcos passados
que do feitiço não nos livrámos
havemos de passar longas noites encobertas
buscando esse canal sagrado essa felicidade

E um dia lá regressados e livres das prisões terrenas
descobriremos um refúgio um templo de limo e de sal
onde se possam viver as coisas belas e sagradas
como nos tempos antigos
quando um pai ensinava a sua arte ao seu filho

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

TRADIÇÃO

o modo antigo
de fazer as coisas
será sempre defendido

entre os caçadores de baleias
entre os comedores de focas
entre os criadores de porcos

O "problema" do tempo
é que enquanto um se acaba
um outro começa

o homem deve eternamente
a sua vida à mudança
e há um tempo que procede à cobrança

Chegamos somos e vamos
uma sucessão de espaços no tempo
que acontecem o ser

Temos a história
a memória
e aquilo que pudermos fazer




quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

DIÁRIO DE BORDO



Sem grandes conflitos interiores
e em quase plena fruição desse divino
que faz do vinho um ofício
permite-me álvaro que acrescente
mais sentimentos esdrúxulos
à sua famosa concepção do ridículo

soubesses o que é mudar fraldas
em vez de cartas tinhas escrito
cacas naturalmente

***

chegámos então aqui
tudo verdadeiramente estilhaçado
a expansão fragmentária do universo
e simultaneamente o seu colapso
num rarefeito centro de gravidade
o monólito de kubrick e de clarke
agora sim e finalmente
plantado no quarto

***

nós não parámos
estamos a ajustar um novo tempo
para podermos continuar
esta terra foi lavrada funda

***
estou falto no verbo
confesso que não tenho
corrido muito

***

um homem nunca se afasta
ás vezes tapa os olhos
ás vezes fecha a boca
engole cospe arrecada
os seus humores longe da oração
mas o punho firme e fechado
vai sempre batendo no peito
silenciosamente

demora
mas um dia a pedra cai
e a água sobe toda de repente



sexta-feira, 20 de novembro de 2015

19NOV2015

muito se dirá sobre estes dias
sobres os ataques de paris e o isis
o governo de esquerda e o presidente na madeira
o mundo inteiro andará cheio de palavras na boca
tudo acontecerá e não acontecerá coisa nenhuma
veremos nova constelação firmar-se ou não
e tudo se reunirá brilhantemente
sobre a mais novíssima tragédia humana

dezanove de novembro do ano de dois mil e quinze
indo para casa já sei lá umas cinco estava chegando
cai sobre mim onde é que eu estou

***

é importante estar minimamente preparado
ter-se feito certas coisas ajuda
mas isso não fará diferença nenhuma
quando bate bate
e bate
e bate

deve ter sido assim desde o princípio
grandes caçadores completamente indefesos

***

um estado do querer
aquele querer que só quere e é puro
e que isso seja lá o que for
que é o que devemos aprender
por muito que nos teime
nãos nos deixará seguro

***

de um planeta estrangeiro
senti a palma da mão suar

vi o que foi nascer
vendo a tua força bruta

não te consigo distinguir
do que acabou de vir ao mundo


só amor vai tão fundo

quinta-feira, 10 de setembro de 2015



rumamos a um país desconhecido
a nossa pátria é a nossa língua
a nossa língua é a dos igrejos avós

dos avós não temos a certeza
mas foram pobres num país
do qual já a lembrança é distorcida
e a memória dessas coisas
tão lambuzada de sangue

só faz ridícula a propaganda





rumamos a um pais desconhecido
e os homens que não temem
aquilo que não sabem
não sonham aquilo que os segue
nem tomam aquilo que os soma
e na sombra
é tudo fofinho


rumamos a um país desconhecido
escolhemos o amor uma ilha e uma cabana
escolhemos ir para onde foder seja forte e fundo
e o dinheiro muito nos olvide a puta da cagança
e os por-dos-sóis celestiais sejam brutais
e adeus




rumamos a um país desconhecido
onde todas as províncias são desconhecidas
onde não existe o reino num reino

rumamos a um país desconhecido

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

DIÁRIO DE BORDO




quando o raio do sublime te atinja
e tu na tua profunda honestidade
não lhe adivinhares a graça
ou porque outro fundamento
se interpõe mais forte
e tu que tanto queres escrever
investes em memorizar um rasgo
que julgas ser um puro acesso de poesia
e tens razão e por isso repetes
insistente na cabeça essa primeira estrofe
para te perderes no meio do que poderá vir a caminho
caga nisso desfruta não escrevas nada
será o teu maior sucesso
repeti-lo-ás vezes sem conta
escrever sem ter escrito nada



***

a grande cidade cairá
insisto teimosamente em escrever
enquanto combato as misérias ordinárias
que me obstinam porque só vejo destino
nas distâncias imensas na vastidão do tempo
que são na realidade o universo em que vivemos
e não esta penúria esta opressão este crime
esta condenação a iminência do fim súbito
esta falta de alegria esta eternidade de grandes e pequenos
esta luta sem ser luta que para lado nenhum nos leva
e nos enterra e lá fora a grande noite de nebulosas
e galáxias e planetas e estrelas que explodem como sinfonias
e os homens parados sem fazerem o que fazem os homens